Bibliotecas públicas de todo o país estão mais próximas de serem
obrigadas a manter pelo menos uma Bíblia disponível aos leitores. Em
mais um avanço da bancada evangélica no Congresso Nacional, o Projeto de
Lei da Câmara (PLC) 16/2009 que inclui o livro religioso nos acervos
entrou na pauta de votações da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ)
do Senado. De lá, ele vai a plenário, de onde pode sair para a sanção da
presidente Dilma Rousseff, caso aprovado. Mas este é apenas mais um
exemplo dos projetos semelhantes propostos Brasil afora que visam
incluir por força de lei o livro em acervos de bibliotecas e escolas
públicas.
A principal acusação contra iniciativas dessa natureza seria a de
atentado contra o Estado laico, garantido pela Constituição federal.
Embora no preâmbulo os constituintes de 1988 digam que promulgam a Carta
Magna “sob a proteção de Deus”, o artigo 5º do texto garante a
liberdade religiosa como direito fundamental. Já o artigo 220 confere o
caráter opcional de aulas de religião em escolas públicas, determinando
que o “ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental”.
Mas as normas constitucionais não são levadas em conta pelos
legisladores. Desde 2011, por exemplo, bibliotecas públicas em todo o
estado do Rio são obrigadas a terem ao menos uma bíblia, sujeitas a
multa de até R$ 4.260 em caso de descumprimento reincidente.
Em São Gonçalo, todas as escolas públicas e privadas, além de
bibliotecas, devem disponibilizar a Bíblia “em local de destaque” desde
janeiro deste ano. Caso as unidades públicas ainda não possuam suas
cópias, a lei determina que o poder público efetuará a compra com
“dotações orçamentárias próprias, ou suplementares, se necessário”.
O mesmo “espírito da lei” também baixou em Recife, Manaus e
Fortaleza, onde vereadores propuseram que a Bíblia não só constasse de
bibliotecas, mas também de escolas da rede municipal. Na capital
cearense, o texto foi proposto em junho deste ano pelo vereador Mairton
Félix. Na justificativa, o parlamentar também alega que o livro
religioso serviria para estudo acadêmico, embora ele mesmo tenha postado
no Facebook estar “muito feliz que as crianças vão conhecer a palavra
de Deus”.
Não é bem assim. No município de Engenheiro Paulo de Frontin (RJ), um
estudante judeu do 9º ano de uma escola municipal foi obrigado a rezar a
oração católica do Pai-nosso. O caso revoltou os pais, que foram
prestar queixa na delegacia. A prática da reza, aliás, chegou a virar
lei orgânica do município de Ilhéus, mas a Justiça baiana acatou a Ação
Direta de Inconstitucionalidade do Ministério Público da Bahia e
suspendeu a norma em 2012.
E em um país onde o sincretismo religioso é uma das suas identidades,
projetos como esses acabam revoltando representantes de outras
religiões. Foi o caso de Ivanir dos Santos, babalorixá e interlocutor da
Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. Segundo ele, a iniciativa
peca ao privilegiar apenas uma confissão religiosa, em detrimento das
demais religiões do povo brasileiro:
— O livro que é considerado sagrado para qualquer segmento deve estar
numa biblioteca, não só Bíblia. Torá, Alcorão (também devem estar lá).
Isso ninguém pode ser contra. Mas outra coisa é um grupo religioso
apresentar projeto de lei que privilegia apenas a sua corrente. Se uma
pessoa no Legislativo apenas advoga para seu segmento religioso, imagina
o que ela faria no Executivo?
Apesar de não ser novidade na pauta dos legisladores, esta é a
primeira vez que um texto dessa natureza chega tão próximo de ser
aprovado em nível federal. O PLC, proposto há cinco anos pelo deputado
Filipe Pereira (PSC-RJ), já foi aprovado na Câmara sem alterações.
Segundo Pereira, a intenção do PLC não é privilegiar uma única confissão
religiosa, já que, segundo ele, a Bíblia não é um livro religioso.
— Nossa preocupação é a manutenção, porque muitas estão com estado
físico deteriorado. A Bíblia não é um livro religioso, já que faculdades
de filosofia, história e sociologia também consultam. Não é apenas uma
leitura religiosa. É universal, é o livro mais lido em todo o mundo.
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O Brasil possui 6.060 bibliotecas públicas, distribuídas em 5.453
municípios. O Censo do IBGE/2010 mostrou 123 milhões que se declaram
católicos, mas os praticantes são apenas 5%. A pesquisa também levantou a
existência de 42,5 milhões de evangélicos.
Para a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não seria
necessário que a presença de Bíblias em bibliotecas fosse exigida por
lei. Segundo o bispo auxiliar de Brasília e secretário-geral da CNBB,
dom Leonardo Steiner, o ideal seria que todos os acervos já contassem
não só com o livro cristão, mas também com obras representativas de
outras religiões:
— A Bíblia é um instrumento de pesquisa, de cultura e um caminho de
vida. Toda boa biblioteca tem que ter os livros mais importantes, com ou
sem lei. E não só a Bíblia, mas também livros de outras religiões, como
o Islã e o budismo.