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01/04/2010

O MAIOR MENTIROSO DO MUNDO

Um metro e sessenta de altura, magruço como um pica-pau, cabelos pretos e duros, naturalmente permanentes à escovinha, cor assim de azinhavre, olhos castanho-claros muito vivos e grandes, conversa sem quaisquer sinais de pontuação, barba esparsa como farripas de coco, sem nenhuma instrução escolar, mas de uma perspicácia de fazer inveja a certos homens fabricados a peso de ouro nas faculdades: destes tantos que ostentam alvacentos jalecos e andam disseminando heresias científicas por aí, assim era o Zé. Se neste Brasil preguiçoso, Adagoberto já é Zé, que dizer do José Antonino das Cruzes?

Morava numa casinha de colono banhada pelo pachorrento riacho Santo Hilário, lá nos confins norte do Espírito Santo. Seus pais e irmãos eram lavradores. Lavradores! Falando assim, imaginamos logo uma família de esquálidos matutos, suarentos ao sol do dia e muito cansados à noite, sempre dedilhando uma viola tristonha à luz da lamparina. Esta a idéia que muitos desinformados, que nunca saíram de sua selva de pedras, têm e infundem do matuto. Na verdade, assim como há muitos abestalhados na cidade, há também muitos matutos perspicazes no interior. O Zé era um destes.

Longe de perder as estribeiras, ele sempre apresentava uma evasiva à altura para safar-se da proverbial alcunha em que a força do hábito o havia prostrado. Mentiras, até mesmo de além-mar, traziam seu nome tão logo invadissem nossas duzentas milhas territoriais.

Naquele tempo, os imigrantes faziam suas estradas a picaretas, enxadões, pás, enxadas, vacas (rodo largo de madeira, tipo lâmina de motoniveladora), couro de boi seco, com o qual arrastavam terra para os aterros... enfim, luta primitiva de nossos ancestrais em busca do progresso.

Vamos lá, a alguns quilômetros acima de Marilândia, esbarrar com um mutirão estrompado que abre caminho na floresta. Eram uns 25 italianos, moradores ou não do núcleo colonizador da região. Para Santo Hilário, onde morava o Zé, já havia uma vereda com aproximadamente dois metros de largura, em que se trafegava em lombo de burro ou cavalos.

Os italianos, extenuados pelo meio-dia de luta, encontravam-se sentados no chão, desamarrando sacolas e toalhas, donde retiravam polenta, queijo, puina, cudeguim, ovos..., e conversavam, exatamente, sobre o mentiroso Zé.

– Quelo lá não digue una parole que no senza una buzia.

(Aquele lá não diz uma palavra que não seja uma mentira.)

– Le um bauco, poareto.

(É um abestalhado, coitado.)

– Ah, si, vá lá!

(Ah, sim, deixa pra lá!)

– A mi, lu no tchapa piú..

(A mim ele não passa a conversa.)

– No digue questa roba, Jijo. Lu son ei diaul a dir buzie.

(Não diga isto, Luís, ele mente como o diabo).

– Mi lo cognosso – a mi lu no tchapa.

(Eu o conheço bem – a mim ele não pega.)

– Verti ei otchi, Jijo.

(Abra os olhos, Luís.)

E a conversa engrolada de português miscigenado com o sofrível dialeto de Vêneto, abria um novo espaço lingüístico como se fosse um afiado facão em plena selva de emaranhados, e, em pouco tempo, com certeza, nem brasileiros nem italianos entenderiam mais a própria língua.

Foi então que se ouviu um repicar confuso de cascos que vinha se aproximando. Mal um tal de Scarpatti avistou-o, apoiou as mãos no queixo suarento, comentando mordaz:

– No se pol nhanca parlar del diaul que lu le cá rente a noaltre.

(Não se pode nem falar no diabo que ele logo aparece no meio da gente.)

– Le lu? – perguntou alguém.

(É ele?)

– Si, si – urdelo, le lu própio.

(Sem dúvidas, é ele mesmo.)

– Demo vede cossa que lu dir ancuoi.

(Vejamos o que tem a dizer hoje.)

A montaria vinha ofegante e mal diminuiu o galope para que o Zé dissesse um "olá turma". Um dos trabalhadores observou maliciosamente:

– Bepi, que buzia no la conta ancuoi?

(Zé, que mentira nos conta hoje?)

Ainda sem parar, apenas deixando o cavalo seguir estertorosamente, ele observou pesaroso e preocupado:

– Hoje não dá. Estou com muita pressa. Fico devendo. Meu pai foi picado por uma jararaca... daquelas miudinhas com anéis pretos e vermelhos. Aquilo é veneno puro. Se eu não encontrar remédio logo, ele morre. Pobre pai!

E foi seguindo a galope, não esquecendo de esfregar a curva do cotovelo nos olhos aljofrados. Não bastasse a vocação inata, ele era, ainda por cima, um ator perfeito.

– Maria Vérgena! – exclamou um dos italianos – Noaltre quá a parlar monade e nostro compare lá quel mor. Andiamo acudir-lo. Demo tuti quanti ajutar-lo.

(Nossa Senhora! Nós aqui a falar besteiras e nosso compadre lá fora morrendo. Ajudemo-lo. Vamos todos acudi-lo).

De onde se encontravam até à casa do pai do Zé, eram mais de quatro quilômetros, o que não impediu que fossem desfeitos em menos de uma hora de pernas batidas. Deglutindo a polenta com queijo e cudeguim, a italianada foi aos pulos, pois aqueles imigrantes eram como se fossem os cristãos dos primeiros tempos: se houvesse um com qualquer problema, todos acorriam fraternos.

Enfim, arrivamos – disse o Jijo – exatamente o que havia dito que, a ele, ninguém, nem o Zé, passaria a perna.

Como todo matuto que se preza, o pai do Zé estava deitado na varanda, sem camisa, o chapéu de palha pendurado num pé de mateiro seco que havia sido pregado no portal de cedro, pitando um cachimbo em baforadas de causar inveja ao mais inveterado matintaperera.

A italianada parou no terreiro e, em ofegos, trocaram olhadelas duvidosas. Ao ouvir o barulho do "tropel" que chegara, o homem ergueu-se assustado:

– Aconteceu alguma coisa, senhores?

– To fiol, quel maladeto dum desgraciato, buzier de uma figa.

(Seu filho, aquele desgraçado, mentiroso de uma figa.)

Era o Jijo – o mesmo que dissera que, a ele, o Zé não pegava.

E entre raiva e gargalhadas, a italianada desfez, cansativamente, os quase cinco quilômetros. Tão logo se distanciaram, o Zé puxou a montaria de detrás da moita e chegou ao terreiro. A quem o visse, não acreditaria que tivesse apenas 32 dentes: até os cacos brilhavam de felicidade.

Fonte: http://usuarios.jupiter.com.br/livaldo/mentiroso.html

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