Reprodução
Capa
publicada em 22/01/1983
Homenagem de Drummond a Garrincha dois dias
após sua morte
A um passe
de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.
Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento,
Dribla mais um, mais dois; a bola trança
Feliz, entre seus pés – um pé de vento!
Num só transporte, a multidão contrita
Em ato de morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.
Garrincha, o anjo, escuta e atende: Gooooool!
É pura imagem: um G que chuta um O
Dentro da meta, um L. É pura dança!
O anjo de pernas tortas, poema de Vinicius de Moraes.
A
necessidade brasileira de esquecer os problemas agudos do país, difíceis de
encarar, ou pelo menos de suavizá-los com uma cota de despreocupação e alegria,
fez com que o futebol se tornasse a felicidade do povo. Pobres e ricos param de
pensar para se encantar com ele. E os grandes jogadores convertem-se numa
espécie de irmãos da gente, que detestamos ou amamos na medida em que nos
frustram ou nos proporcionam o prazer de um espetáculo de 90 minutos, prolongado
indefinidamente nas conversas e mesmo na solidão da lembrança.
Mané
Garrincha foi um desses ídolos providenciais com que o acaso veio ao encontro
das massas populares e até dos figurões responsáveis periódicos pela sorte do
Brasil, ofertando-lhes o jogador que contrariava todos os princípios
sacramentais do jogo, e que no entanto alcançava os mais deliciosos resultados.
Não seria mesmo uma indicação de que o país, despreparado para o destino
glorioso que ambicionamos, também conseguiria vencer suas limitações e
deficiências e chegar ao ponto de grandeza que nos daria individualmente o maior
orgulho, pela extinção de antigos complexos nacionais? Interrogação que
certamente não aflorava ao nível da consciência, mas que podia muito bem
instalar-se no subterrâneo do espírito de cada patrício inquieto e insatisfeito
consigo mesmo, e mais ainda com o geral da vida.
Garrincha, em sua
irresponsabilidade amável, poderia, quem sabe?, fornecer-nos a chave de um
segredo de que era possuidor e que ele mesmo não decifrava, inocente que era da
origem do poder mágico de seus músculos e pés. Divertido, espontâneo,
inconseqüente, com uma inocência que não excluía espertezas instintivas de
Macunaíma – nenhum modelo seria mais adequado do que esse, para seduzir um povo
que, olhando em redor, não encontrava os sérios heróis, os santos miraculosos de
que necessita no dia-a-dia. A identificação da sociedade com ele fazia-se
naturalmente. Garrincha não pedia nada a seus admiradores; não lhes exigia
sacrifícios ou esforços mentais para admirá-lo e segui-lo, pois de resto não
queria que ninguém o seguisse. Carregava nas costas um peso alegre,
dispensando-nos de fazer o mesmo. Sua ambição ou projeto de vida (se é que, em
matéria de Garrincha, se pode falar em projeto) consistia no papo de botequim,
nos prazeres da cama, de que resultasse o prazer de novos filhos, no
descompromisso, afinal, com os valores burgueses da vida.
Não sou dos
que acusam dirigentes do esporte, clubes, autoridades civis e torcedores em
geral, de ingratidão para com Garrincha. Na própria essência do futebol
profissional se instalam a ingratidão e a injustiça. O jogador só vale enquanto
joga, e se jogar o fino. Não lhe perdoam a hora sem inspiração, a traiçoeira
indecisão de um segundo, a influência de problemas pessoais sobre o
comportamento na partida. É pago para deslumbrar a arquibancada e a cadeira
importante, para nos desanuviar a alma, para nos consolar dos nossos malogros,
para encobrir as amarguras da Nação. Ele julga que entrou em campo a fim de
defender o seu sustento, mas seu negócio principal será defender milhões de
angustiados presentes e ausentes contra seus fantasmas particulares ou
coletivos. Garrincha foi um entre muitos desses infelizes, dos quais só se salva
um ou outro predestinado, de estrela na testa, como Pelé.
A simpatia
nacional envolveu Mané em todos os lances de sua vida, por mais desajustada que
fosse, e isso já é alguma coisa que nos livra de ter remorso pelo seu final
triste. A criança grande que ele não deixou de ser foi vitimada pelo germe de
autodestruição que trazia consigo: faltavam-lhe defesas psicológicas que
acudissem ao apelo de amigos e fãs. Garrincha, o encantador, era folha ao vento.
Resta a maravilhosa lembrança de suas incríveis habilidades, que farão sempre
sorrir a quem as recordar. Basta ver um filme dos jogos que ele disputou:
sente-se logo como o corpo humano pode ser instrumento das mais graciosas
criações no espaço, rápidas como o relâmpago e duradouras na memória. Quem viu
Garrincha atuar não pode levar a sério teorias científicas que prevêem a
parábola inevitável de uma bola e asseguram a vitória – que não acontece.
Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e
farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de
todos, nos estádios. Mas como é também um deus cruel, tirou do estonteante
Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e
pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é
que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um
novo, que nos alimente o sonho.
Fonte: "
Jornal do Brasil" de
22.01.1983
Pauta Eliton Meneses