Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto
mais vasto é o meu coração.
Drummond
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto
mais vasto é o meu coração.
Drummond
A Palma já não é a mesma sem ti, meu avô. O barulho
do chocalho do gado cessou. A brisa agora varre nostálgica a carnaubeira.
Nenhum vaqueiro abóia mais. Venderam o seu gado, as terras, as criações e o
cavalo cocho. Venderam até as casas da "Rua de Baixo". E o apurado
ainda não deu pra muita coisa. Era muito filho, ‘vô. E ao vaqueiro ainda coube
um quinhão... Afinal, ele era vaqueiro, veterinário, conselheiro e confidente.
O gado na mão dele não prosperou, mas sempre havia algum leite para a venda e
para uns queijos aqui e acolá.
Das propriedades, não sobrou nada, 'vô. Cada
herdeiro, antes de receber seu quinhão, já o havia negociado. Setenta anos de
trabalho árduo e economia rigorosa foram desfeitos em algumas horas de
maquinação e balbúrdia.
Ninguém mais contemplará aquelas terras com o mesmo
amor. Ninguém mais sonhará todas as noites com centenas de reses confinadas nos
currais. O sonho acabou, meu avô. O senhor foi definhando, definhando, até não
resistir mais e permitir que se apossassem do que era seu.
A Barra, o Ramalhete, o Pé-do-morro, tudo está
triste. Não há nenhum chocalho. Nenhuma cabeça de gado pra quebrar a monotonia
do fim de tarde. Há apenas um redemoinho arrastando umas folhas secas. Uma
nuvem branca imóvel e uma longa estrada vazia, em cujas margens se erguem uns
mameleiros retorquidos. Da casa do Evaristo não se ouve eco algum. O pobre
velho também já faleceu. A mulher e os cachorros foram morar na rua. O sol
parece dar uma trégua para o que restou do açude-do-meio. Mas logo que o sol
esfria vem o vento forte que lambe sempre o que restou de água. Os urubus
espreitam a carcaça de uma bezerra moribunda e uns dois campinas retardatários
procuram debalde uma poça d’água no regato.
Tenho saudade, meu velho. Saudade do seu cheiro de
mato. Do seu olhar vazio. Da sua palavra firme e até da sua avareza jocosa.
Temos todos saudade. Não há mais couro de cabra no cabide, cangalha espalhada
pelos cantos, um fardo de milho no chão. A casa grande d’outrora minguou.
Abandonaram-na. No corredor, sua rede parece inda armada. Sua tosse seca parece
ainda ecoar. No quarto do meu meio o tio ‘Di’ planeja dominar o mundo, mas a
diabetes é que o está dominando, insaciável. Na cozinha sem vida a vovó parece
dar ordem à empregada. É preciso mexer o doce, guardar o soro pra coalhada da
noite, ir atrás do Valdemir.
Um cabrito berra no quintal. Não, não berra, é mera
impressão. Olho a despensa vazia. Tenho a sensação de estar sendo seguido. Ouço
o arrastar de um chinelo de couro. Não me assombro, sigo adiante taciturno.
Fecho o velho portão. De longe, o ‘Rabo-da-gata’
deserto, já nem lembra os velhos tempos. Apenas uma miragem sua. Miragem. Tudo
aqui e o senhor tão distante. Num cemitério monótono de uma terra que não lhe
agrada. Após um velório apressado, cercado de alguma lamentação e uns
inevitáveis planos de partilha, deixaram-no em paz. Numa planície aguada duma
manhã de verão. No céu, uma barra acenava com um inverno promissor. Toda a
terra iria florir, a vazante seria inundada, a rês leiteira... Mas você não
estará aqui. Já terá findado o último capítulo. Fecharam o seu livro e o
devolveram à biblioteca da memória.
- Adeus, meu avô!
Etim, Coreaú, julho de 2004